Tuesday, March 07, 2006

Neste ano o inverno tinha chegado mais cedo. E como em todos os anos, aquele lago transformava-se num sítio ideal para passar as tardes: o gelo espesso extendia-se por uma enorme planíncie, formando um verdadeiro tapete branco, liso e homogêneo. O sol parecia estar eternamente a pôr-se, a cada minuto que se aproximava daquelas montanhas que delineavam o horizonte parecia abrandar a sua marcha, como se estivesse relutante em deixar de iluminar aquela paisagem tão singular. E cada por-do-sol parecia mais mágico que o anterior, o céu era tingido de um encarnado vivo, e aquela coloração peculiar reflectia-se sobre o gelo de forma difusa, criando um belo espetáculo de cores.

Cerrou os olhos e bocejou, enquanto olhava com dificuldade para o fundo daquele tapete branco de gelo. Patinava com dificuldade, arrastando perna a perna num esforço constante. Seu desajeito era peculiar, muito dado à compreensão, raramente se dava ao luxo de viver os prazeres mundanos, de sentir a alegria de ver o seu corpo dominado pelos patins e de deixar-se levar naquela superfície escorregadia, e ainda estava longe de compreender o prazer nesta actividade. Neste momento só lhe interessava encontra-la, aquela bela figura de cabelos negros e olhos reluzentes, provavelmente escondida entre os rostos felizes, a deslizar graciosamente, flutuando sobre os seus finos pés.

Olhou ao seu redor novamente enquanto limpava as gostas de suor quase petrificadas com as luvas. Impacientemente, cruzou os braços e ficou a espera que ela o encontrasse, mas sem sucesso. Um bocejo, um suspiro, e via as horas a passar, o sol a esconder-se timidamente, os sorrisos a dissiparem-se em tons de cansaço, e pouco a pouco o lugar ficava vazio. Assim olhou em volta outra vez, e quando decidia retirar-se do local, reparou que as poucas pessoas que restavam começavam a amotinar-se, concentrando-se sobre um ponto isolado ao fundo daquele lago congelado, junto às margens de segurança, que delimitavam a área onde o gelo não era suficientemente espesso para ser patinado, como se algo estranho tivesse ocorrido. Relutantemente arrastou-se até lá, abrindo caminho em meio às expressões horrorizadas dos que assistiam à cena, parando, quase que inconscientemente, enquanto via as equipas de resgate em volta daquele buraco no lago congelado.

Largou as luvas no chão, e de tão assustado só o silêncio ecoava em si. Os gritos e os comentários das pessoas ao seu redor eram logo abafados pela adrenalina que afogava seus sentimentos, dor já não conseguia sentir, apenas medo, frustração, e uma vontade insana de desaparecer. Fechou os olhos, suspirou, e tentou compreender. Mas a realidade lhe escapara, os pormenores da dor eram demais para se encaixarem em qualquer modelo que tentasse construir. Sua imaginação ficara limitada à impotência de assistir àquele triste fim sem nada poder fazer para evitá-lo. Via-a pálida, cianótica, rígida, ausente daquele calor e da alegria que costumava irradiar.

Por tantas vezes já pensara sobre a morte, por tantas vezes via-a banalizada, assistia-a como uma estatística e divirtia-se com ela como um entretenimento. Neste momento pensava em como usamos a morte, em como, embora sendo a nossa única impossibilidade, o nosso único inalcançável, passamos a vida a ensair o momento em que já não viveremos. Mas sentir a morte, viver a morte, presenciá-la ser roubado por ela é algo que nunca pensara antes, e que sempre evitara pensar. Mas a única compreensão que obteve sobre a morte foi que esta é impossível, a vida é um pormenor transitório em meio à eternidade e infinitude que cercam o nada...

O nunca e o para sempre são dois conceitos inatingíveis para qualquer ser humano. Limitados à temporariedade da vida, nunca poderemos contemplar e compreender a infinitude, mas tememo-la. E de facto nascemos para o efémero e o intenso, nascemos sem intuito ou finalidade, e viver não é mais um direito do que uma obrigação. Não nos resta nenhuma outra hipótese senão aceitar e deixarmo-nos levar por este magnífico teatro que é a vida...

Neste momento acordou, a transpirar, assustado, numa respiração ofegante, receando a própria imaginação, livrando-se das falsas memórias de um sonho indesejado. Virou-se para o lado e sentiu o calor de um toque, uma mão percorreu-lhe o rosto e aquela voz que tantas vezes ouvira e muitas outras vezes mais ainda ouviria sussurrou um tenro "boa noite". Neste momento se sentiu agradecido por poder viver tal felicidade todos os dias, e voltou a dormir radiante, com um sorriso que o mais brilho dos escuros iluminaria.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Hm hm.

Posso dizer que era mais ou menos previsível (não o parágrafo final, mas esse a única coisa que lhe acrescenta é um final feliz), mas suponho que também fosse mais ou menos essa a ideia. O suspense antes do protagonista saber que era ela lá em baixo podia estar mais desenvolvido, mesmo não sendo esse o principal foco do conto, há ali uma passagem que parece demasiado brusca entre indiferença e pânico, entre afastar as pessoas e um olhar desesperado.

Quanto à reflexão sobre a morte, está interessante - embora mais uma vez talvez pudesse estar mais desenvolvida -, não é exactamente a minha visão, mas também não vou começar para aqui a filosofar do nada, esse é o teu trabalho aqui.

1:21 PM  

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