Tuesday, March 07, 2006

Nada mais do que uma ensolarada tarde de verão. O Sol iluminava aquele jardim que há muito tempo parecia morto, intocado, e algumas rosas ainda sobreviviam ao flagelo do tempo, mostrando uma esperança rígida em sobreviver, dia após dia, entregues à sorte do destino. Aquele portal intimidador, mas abandonado, resquícios daquilo que provavelmente um dia fora um local cobiçado, bem cuidado, mas que agora não possuía uma alma que por ele zelasse. Alguns raios de sol ainda conseguiam trespassar a barreira dos cortinados escuros e pesados, avançando modestamente, dando alguma vida àquela sala escura. Uma mesa velha, imponente em suas formas, ainda com os castiçais postos e velas semi-ardidas, como se ali permanecessem eternamente a espera do próximo convidado, e como se não muito se tivesse ocorrido desde a última vez que alguém ali se serviu... As estantes sufocavam sob as intermináveis camadas de pó que ali se assentaram, e os intermináveis livros, ali, continuavam arrogantes, a reclamar os postos mais altos e contempláveis naquela casa que o tempo tinha esquecido.

Seguia-se um corredor escuro. À esquerda erguiam-se orgulhosamente quadros, retratos, exacerbações de glória e orgulho, apagadas pela escuridão mórbida do tempo e do abandono. Alguns castiçais erguiam-se à direita por entre as portas, quase perfeitas obras de artes em seus detalhes minunciosos, padrões complexos e bem elaborados imprimidos numa madeira quase eternizada, rígida e altiva, mas que na ponta já apresentava os sinais do desgaste, daquela pequena chama que tempo após tempo, conseguiu penetrar naquela solidez. Pouco mais a frente encontrava-se um espelho, ainda coberto pela espessa camada de pó que vagueava por toda a casa, mas que ainda reflectia a mesma imagem límpida e cristalina de há tantos anos atrás... Sua imagem quase que fala por si própria, é de uma melancolia tal que parece saber que estará condenada a ali permanecer, imutável e intocável, por toda a eternidade, sempre a ver o mesmo corredor, os mesmos quadros e sufocado sob a mesma quietude... Sob o espelho, acima duma pequena mesa que outrora servira de suporte a ornamentos, ainda perecia um velho incenso de jasmim, queimado até a metade, mas ainda impregnado da essência que um dia preenchia aquela casa com vida.

Chegou num carro desportivo vermelho, que ainda mais incandescente parecia em meio àquele Sol escaldante. Após percorrer aquela estrada de terra mal-terminada, estacionou o carro em frente à porta, e saiu, meio que hesitante e relutantemente, a ir de encontro com aquela casa que tão estranha impressão lhe causara. Tinha um ar distinto, elegante, embora não muito rebuscado. Sua face pouco apresentava sinais da idade, a barba por fazer indicava um desleixo que era logo abafado pelo estrondoso cheiro de seu perfume, um aroma sereno, tranquilo, embora arrojado e provocante. Suas vestes passam desapercebidas: sapatos semi-clássicos, calças de ganga e uma polo preta, que faz um bele contraste com a sua pele extremamente branca, albina, de alguém que pouco se expõe ao Sol. Seu cabelo não parece ser o mais perfeito exemplo de simetria, embora curto permanece sempre despenteado, às vezes coberto por um chapéu branco nos dias mais soalheiros.

Atravessou o jardim lentamente enquanto irritado, procurava a chave que lhe tinha sido dada em meio aos seus bolsos. Era singular, pesada, e mal cabia na palma de uma mão. O portal era igualmente exuberante, com uma maçaneta que já quase possuía teias após tantos anos sem quem lhe cuidasse. Enquanto entrava, uma sensação de perplexidade invadia-lhe a alma com a magnitude daquela casa, tão bela, tão morta e tão misteriosa. Andou em volta da mesa, tocando em cada castiçal, cada vela, apreciando cada desenho nos bordos das cadeiras e afastando algumas das teias que já se formavam no candelabro. Alguns livros logo lhe saltam à vista, Kant, Nietzsche e uma perfeita e organizada colecção de obras de Shakespeare.

Seguiu em frente no corredor, olhou cada quadro como se já o conhecesse antes, apreciou os traços e quase que iniciou uma conversa com aquelas obras de artes, enquanto andava em direcção àquele espelho que tanto chamava a atenção. Limpou superficialmente parte do pó nele depositado e parou frente a si mesmo, como se aquela imagem não fosse estranha, como se o espelho já o conhecesse, e após anos, parasse para o cumprimentar novamente. Após um tempo perplexo limpou o restante do espelho, tentando faze-lo voltar à cristanilidade original, àquela perfeição e simetria digna dos verdadeiros espelhos, mas o tempo já lá deixara suas marcas, irretornáveis... Talvez tenha se identificado com aquele espelho enquanto para lá olhava, após anos, o tempo também lhe deixara cicatrizes que nunca desaparecerão, marcas que se eternizarão consigo próprio. E sentia o doce sabor do silêncio, da quietude e do vazio que sobre aquela casa reinava, silêncio este que só era interrompido esporádicamente pelo agradável ruído que fazia o vento sobre as árvores em volta, produzindo um verdadeiro espetáculo de sombras, ora encantador, ora assustador, sobre aquele cortinado escuro.

Enquanto se distraía consigo mesmo, ouviu ruídos, passos talvez, e num movimento lento e hesitante virou-se, encontrando um pequeno gato acinzentado a rondar a sala, a procura de um roedor para sua refeição em meio ao abandono daquela casa, talvez. Dirigiu-se então para uma das portas, rodando a maçaneta e emitindo um som ruidoso, agudo, que lhe ecoava pelos tímpanos e lhe causava uma estranha sensação de ansiedade, enquanto abria lentamente a porta, para descobrir aquilo que lá dentro se encontrava. Passo a passo entrou no quarto, e o que viu não foi nada de invulgar. Uma cama por fazer, que ainda, miraculosamente, parecia guardar os contornos da última pessoa que lá se deitou, e chamou-lhe a atenção uma caixa repleta de cadernos e desenhos, provavelmente de uma criança.

Ajoelhou-se no chão face a esta caixa e limitou-se a vasculhar estes antigos documentos. Talvez uma vida inteira se encontrasse ali, romances, tragédias, comédias, cenas de um passado já intocado, de um agora que já foi vivido, intenso, mas que transformara-se em memórias encaixotadas, excertos esquecidos de uma existência. No fundo desta caixa encontrava-se um diário ainda muito bem conservado, já completamente escrito da primeira a última página, repleto de ideias e emoções. Limitou-se a ler, página a página, enquanto, por entre um sorriso e um franzir de testa, reinava um ar de perplexidade, admiração, permanecia ainda incrédulo. Lançou os braços sobre aquela cama desfeita, com o cuidado de não desmanchar a forma como encontrava-se desarrumada, encostou a cabeça sobre um dos bordos e limitou-se a pensar... e toda a sua linhagem de raciocínio culminou para um ponto em que só as lágrimas faziam sentido, e refugiou-se em sua fraqueza, foi buscar forças em sua submissão à realidade.

Lentamente voltou a dirigir-se àquele espelho, encarou-o e enxugou suas lágrimas, enquanto apreendia a forma do incenso com os dedos, sentia o seu áspero toque enquanto ainda podia apreciar resquícios daquela maravilhosa essência. Lentamente tirou um isqueiro dos bolsos, voltando a acender aquele incenso, deixando-o arder, minuto após minuto, até que chegasse ao seu fim inevitável. Hora e outra aquele perfume encantado das jasmins invadia-lhe os sentidos, desrespeitava a solidão que reinava, tapando aquele vácuo insuportável... Num inspirar forte o gosto sufocante da melancolia se transformava em liberdade, num desejo ardente de levantar as asas e voar, sem rumo, guiado pela anestesia sentimental que o perfume lhe trazia.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

estava com medo... até chegar a este post

;)

11:37 AM  

Post a Comment

<< Home