Tuesday, March 07, 2006

Epistemology, no theology!

outro artigo da série:
http://theoreticalutopia.blogspot.com/2006/03/sesso-de-atormento-de-almas-alheias.html

2 é divisor de 120
3 é divisor de 120
4 é divisor de 120
5 é divisor de 120
6 é divisor de 120

Logo, concluo que todos os números são divisores de 120!

Este é o exemlo mais óbvio (erróneo, óbviamente) daquilo a que chamamos processo de indução. Embora não pareça, todo o processo de conhecimento passa pela concepção de modelos baseados em induções: conhecemos determinados fenómenos que agrupamos e classificamos, logo conseguimos prever e controlar o comportamento dos demais fenómenos semelhantes a estes.
Mas antes de nos aventurarmos sobre a estrutura em si dos modelos, pensemos em como é feito o nosso contacto com o mundo.

Temos os chamados sentidos: Tacto, Olfato, Paladar, Audição e Visão. Sem entrar em maior pormenores, conclui-se facilmente que os nossos sentidos necessitam do meio para interagir com os fenómenos perceptíveis: Vejo luz, não objectos; Quando toco em algo, na realidade estou a sentir a interacção electrónica dos meus átomos com os seus; O olfato e o paladar analisam as moléculas que chegam até as papilas receptoras; A audição interpreta a vibração das partículas do meio. Sendo assim, por trás dos fenómenos que observo existem objectos, que podem ou não corresponder àquilo que me é perceptível.
Talvez para total compreensão daquilo que me cerca seja relevante conhecer a verdadeira estrutura destes objectos, mas a partir do momento que o meu único intuito é explicar a realidade observável, torna-se completamente indiferente ir para além dos fenómenos, visto que só estes é que terão interacção connosco. Para a natureza dos objectos limitamo-nos a criar estes ditos modelos, que não passam de uma aproximação aberrante daquilo que conseguimos "ver" com os sentidos e nos permitem prever determinados acontecimentos.

Ao ver uma maçã, vejo na realidade a luz que é reflectida pela superfície desta maçã, mas isto já me dá informação o suficiente para "crer" que existe uma maçã por trás daquilo que vejo. Ao observar várias maçãs, retiro as principais características e induzo que todas as maçãs terão estas características próprias. Se a largar no ar, ela cairá, assim como qualquer corpo que seja largado sobre a superfície da Terra, o que me permitirá induzir que todos os corpos largados cairão sobre a Terra. Podemos sempre tentar falsificar o modelo ao procurar casos específicos que o contrariem, mas nunca encontraremos forma de afirmar a sua veracidade.

A maior limitação na criação dos modelos assenta-se em dois factores subjacentes à nossa falta de experiência: não podemos conhecer o suficiente para que as nossas induções sejam perfeitas, assim como há fenómenos que interagem com o meio, mas que não podem ser observáveis directamente. A impossibilidade de presenciar todos os fenómenos será sempre uma condição natural intrínseca ao nosso conhecimento, pelo que não há forma de supera-la senão com a aceitação de que todos os modelos terão a sua limitação. A impossibilidade de observar directamente certos fenómenos não é um factor muito comum no nosso quotidiano, mas tem sérias implicações no desenvolvimento de modelos mais complexos baseados no raciocínio científico.

Para compreender este facto, pensemos no seguinte exemplo:

Estou numa sala escura cercado de bolas que viajam à minha volta com determinada velocidade. Disponho de bolas com tamanho ligeiramente inferior que são reflectidas directamente para mim ao chocar contra outras, denunciando a sua posição, e esta é a única forma que possuo para conhecer o meio a minha volta. Quero determinar a posição de uma certa bola que viaja a uma determinada velocidade, então atiro a minha bola contra ela e espero pela reflexão. Neste momento terei uma medição extremamente precisa sobre a posição em que esta bola se encontrava, mas alterei a sua velocidade. Caso faça o mesmo para determinar a velocidade de uma qualquer bola, alterarei a sua posição, interferindo na observação. Este caso passa-se na realidade, mas a nível microcósmico: as bolas que quero detectar são partículas subatómicas e o meio que uso para detecta-las são os fotões - partículas que transportam a luz. A grandes escalas, devido ao tamanho ínfimo dos fotões, esta interacção não produz grandes alterações no que vejo, mas a pequena escala as observações pertubam o meio, pelo que fico impossibilitado de conhecer na perfeição os fenómenos em si.

Se considerarmos que todos os modelos criados têm como base a nossa imaginação, e a nossa imaginação está limitada à realidade perceptível, posso chegar à conclusão que não há forma de descrever modelos para fenómenos cuja natureza transcende aquilo que podemos conhecer. Neste caso afirmo que a natureza torna-se mais complexa do que aquilo que podemos imaginar, embora este não seja um facto limitador na construção dos modelos, visto que também disponho de ferramentas que transcendem a minha imaginação.

Imaginemos um número, como por exemplo, 7. Se tentarmos dar significado a este número chegaremos a uma infinidade de pensamentos paralelos, mas todos com o único padrão que se baseia na quantidade denotada por este número. Podemos extender este raciocínio a uma adição, como por exemplo 7+7, ou a uma multiplicação: 7*7, ou a uma potenciação: 7^7, e podemos introduzir tantos elementos lógicos quanto quisermos até que chegamos a um ponto em que a nossa imaginação não é capaz de alcançar a extensão destas operações, concluindo que a matemática é mais extensa que a imaginação no que trata a operações lógicas e atribuição de padrões!

Como visto, o acto de conhecer modelos passa basicamente pela noção de indução e classificação/padronização, pelo que a matemática torna-se um meio quase que indispensável para um conhecimento rigoroso dos fenómenos observáveis. Posso, mesmo nos casos em que não tenho acesso directo aos fenómenos, atribuir-lhes padrões, e através da padronização sucessiva e de processos de indução, criar modelos matemáticos que se aproximem cada vez mais da realidade observável. E o espantoso é ver como a realidade, inexplicavelmente, se ajusta tão bem à matemática na harmonia da interacção entre os seus diversos elementos: a matemática nos aproxima de Deus.


(continuará, um dia...)
Nada mais do que uma ensolarada tarde de verão. O Sol iluminava aquele jardim que há muito tempo parecia morto, intocado, e algumas rosas ainda sobreviviam ao flagelo do tempo, mostrando uma esperança rígida em sobreviver, dia após dia, entregues à sorte do destino. Aquele portal intimidador, mas abandonado, resquícios daquilo que provavelmente um dia fora um local cobiçado, bem cuidado, mas que agora não possuía uma alma que por ele zelasse. Alguns raios de sol ainda conseguiam trespassar a barreira dos cortinados escuros e pesados, avançando modestamente, dando alguma vida àquela sala escura. Uma mesa velha, imponente em suas formas, ainda com os castiçais postos e velas semi-ardidas, como se ali permanecessem eternamente a espera do próximo convidado, e como se não muito se tivesse ocorrido desde a última vez que alguém ali se serviu... As estantes sufocavam sob as intermináveis camadas de pó que ali se assentaram, e os intermináveis livros, ali, continuavam arrogantes, a reclamar os postos mais altos e contempláveis naquela casa que o tempo tinha esquecido.

Seguia-se um corredor escuro. À esquerda erguiam-se orgulhosamente quadros, retratos, exacerbações de glória e orgulho, apagadas pela escuridão mórbida do tempo e do abandono. Alguns castiçais erguiam-se à direita por entre as portas, quase perfeitas obras de artes em seus detalhes minunciosos, padrões complexos e bem elaborados imprimidos numa madeira quase eternizada, rígida e altiva, mas que na ponta já apresentava os sinais do desgaste, daquela pequena chama que tempo após tempo, conseguiu penetrar naquela solidez. Pouco mais a frente encontrava-se um espelho, ainda coberto pela espessa camada de pó que vagueava por toda a casa, mas que ainda reflectia a mesma imagem límpida e cristalina de há tantos anos atrás... Sua imagem quase que fala por si própria, é de uma melancolia tal que parece saber que estará condenada a ali permanecer, imutável e intocável, por toda a eternidade, sempre a ver o mesmo corredor, os mesmos quadros e sufocado sob a mesma quietude... Sob o espelho, acima duma pequena mesa que outrora servira de suporte a ornamentos, ainda perecia um velho incenso de jasmim, queimado até a metade, mas ainda impregnado da essência que um dia preenchia aquela casa com vida.

Chegou num carro desportivo vermelho, que ainda mais incandescente parecia em meio àquele Sol escaldante. Após percorrer aquela estrada de terra mal-terminada, estacionou o carro em frente à porta, e saiu, meio que hesitante e relutantemente, a ir de encontro com aquela casa que tão estranha impressão lhe causara. Tinha um ar distinto, elegante, embora não muito rebuscado. Sua face pouco apresentava sinais da idade, a barba por fazer indicava um desleixo que era logo abafado pelo estrondoso cheiro de seu perfume, um aroma sereno, tranquilo, embora arrojado e provocante. Suas vestes passam desapercebidas: sapatos semi-clássicos, calças de ganga e uma polo preta, que faz um bele contraste com a sua pele extremamente branca, albina, de alguém que pouco se expõe ao Sol. Seu cabelo não parece ser o mais perfeito exemplo de simetria, embora curto permanece sempre despenteado, às vezes coberto por um chapéu branco nos dias mais soalheiros.

Atravessou o jardim lentamente enquanto irritado, procurava a chave que lhe tinha sido dada em meio aos seus bolsos. Era singular, pesada, e mal cabia na palma de uma mão. O portal era igualmente exuberante, com uma maçaneta que já quase possuía teias após tantos anos sem quem lhe cuidasse. Enquanto entrava, uma sensação de perplexidade invadia-lhe a alma com a magnitude daquela casa, tão bela, tão morta e tão misteriosa. Andou em volta da mesa, tocando em cada castiçal, cada vela, apreciando cada desenho nos bordos das cadeiras e afastando algumas das teias que já se formavam no candelabro. Alguns livros logo lhe saltam à vista, Kant, Nietzsche e uma perfeita e organizada colecção de obras de Shakespeare.

Seguiu em frente no corredor, olhou cada quadro como se já o conhecesse antes, apreciou os traços e quase que iniciou uma conversa com aquelas obras de artes, enquanto andava em direcção àquele espelho que tanto chamava a atenção. Limpou superficialmente parte do pó nele depositado e parou frente a si mesmo, como se aquela imagem não fosse estranha, como se o espelho já o conhecesse, e após anos, parasse para o cumprimentar novamente. Após um tempo perplexo limpou o restante do espelho, tentando faze-lo voltar à cristanilidade original, àquela perfeição e simetria digna dos verdadeiros espelhos, mas o tempo já lá deixara suas marcas, irretornáveis... Talvez tenha se identificado com aquele espelho enquanto para lá olhava, após anos, o tempo também lhe deixara cicatrizes que nunca desaparecerão, marcas que se eternizarão consigo próprio. E sentia o doce sabor do silêncio, da quietude e do vazio que sobre aquela casa reinava, silêncio este que só era interrompido esporádicamente pelo agradável ruído que fazia o vento sobre as árvores em volta, produzindo um verdadeiro espetáculo de sombras, ora encantador, ora assustador, sobre aquele cortinado escuro.

Enquanto se distraía consigo mesmo, ouviu ruídos, passos talvez, e num movimento lento e hesitante virou-se, encontrando um pequeno gato acinzentado a rondar a sala, a procura de um roedor para sua refeição em meio ao abandono daquela casa, talvez. Dirigiu-se então para uma das portas, rodando a maçaneta e emitindo um som ruidoso, agudo, que lhe ecoava pelos tímpanos e lhe causava uma estranha sensação de ansiedade, enquanto abria lentamente a porta, para descobrir aquilo que lá dentro se encontrava. Passo a passo entrou no quarto, e o que viu não foi nada de invulgar. Uma cama por fazer, que ainda, miraculosamente, parecia guardar os contornos da última pessoa que lá se deitou, e chamou-lhe a atenção uma caixa repleta de cadernos e desenhos, provavelmente de uma criança.

Ajoelhou-se no chão face a esta caixa e limitou-se a vasculhar estes antigos documentos. Talvez uma vida inteira se encontrasse ali, romances, tragédias, comédias, cenas de um passado já intocado, de um agora que já foi vivido, intenso, mas que transformara-se em memórias encaixotadas, excertos esquecidos de uma existência. No fundo desta caixa encontrava-se um diário ainda muito bem conservado, já completamente escrito da primeira a última página, repleto de ideias e emoções. Limitou-se a ler, página a página, enquanto, por entre um sorriso e um franzir de testa, reinava um ar de perplexidade, admiração, permanecia ainda incrédulo. Lançou os braços sobre aquela cama desfeita, com o cuidado de não desmanchar a forma como encontrava-se desarrumada, encostou a cabeça sobre um dos bordos e limitou-se a pensar... e toda a sua linhagem de raciocínio culminou para um ponto em que só as lágrimas faziam sentido, e refugiou-se em sua fraqueza, foi buscar forças em sua submissão à realidade.

Lentamente voltou a dirigir-se àquele espelho, encarou-o e enxugou suas lágrimas, enquanto apreendia a forma do incenso com os dedos, sentia o seu áspero toque enquanto ainda podia apreciar resquícios daquela maravilhosa essência. Lentamente tirou um isqueiro dos bolsos, voltando a acender aquele incenso, deixando-o arder, minuto após minuto, até que chegasse ao seu fim inevitável. Hora e outra aquele perfume encantado das jasmins invadia-lhe os sentidos, desrespeitava a solidão que reinava, tapando aquele vácuo insuportável... Num inspirar forte o gosto sufocante da melancolia se transformava em liberdade, num desejo ardente de levantar as asas e voar, sem rumo, guiado pela anestesia sentimental que o perfume lhe trazia.
Neste ano o inverno tinha chegado mais cedo. E como em todos os anos, aquele lago transformava-se num sítio ideal para passar as tardes: o gelo espesso extendia-se por uma enorme planíncie, formando um verdadeiro tapete branco, liso e homogêneo. O sol parecia estar eternamente a pôr-se, a cada minuto que se aproximava daquelas montanhas que delineavam o horizonte parecia abrandar a sua marcha, como se estivesse relutante em deixar de iluminar aquela paisagem tão singular. E cada por-do-sol parecia mais mágico que o anterior, o céu era tingido de um encarnado vivo, e aquela coloração peculiar reflectia-se sobre o gelo de forma difusa, criando um belo espetáculo de cores.

Cerrou os olhos e bocejou, enquanto olhava com dificuldade para o fundo daquele tapete branco de gelo. Patinava com dificuldade, arrastando perna a perna num esforço constante. Seu desajeito era peculiar, muito dado à compreensão, raramente se dava ao luxo de viver os prazeres mundanos, de sentir a alegria de ver o seu corpo dominado pelos patins e de deixar-se levar naquela superfície escorregadia, e ainda estava longe de compreender o prazer nesta actividade. Neste momento só lhe interessava encontra-la, aquela bela figura de cabelos negros e olhos reluzentes, provavelmente escondida entre os rostos felizes, a deslizar graciosamente, flutuando sobre os seus finos pés.

Olhou ao seu redor novamente enquanto limpava as gostas de suor quase petrificadas com as luvas. Impacientemente, cruzou os braços e ficou a espera que ela o encontrasse, mas sem sucesso. Um bocejo, um suspiro, e via as horas a passar, o sol a esconder-se timidamente, os sorrisos a dissiparem-se em tons de cansaço, e pouco a pouco o lugar ficava vazio. Assim olhou em volta outra vez, e quando decidia retirar-se do local, reparou que as poucas pessoas que restavam começavam a amotinar-se, concentrando-se sobre um ponto isolado ao fundo daquele lago congelado, junto às margens de segurança, que delimitavam a área onde o gelo não era suficientemente espesso para ser patinado, como se algo estranho tivesse ocorrido. Relutantemente arrastou-se até lá, abrindo caminho em meio às expressões horrorizadas dos que assistiam à cena, parando, quase que inconscientemente, enquanto via as equipas de resgate em volta daquele buraco no lago congelado.

Largou as luvas no chão, e de tão assustado só o silêncio ecoava em si. Os gritos e os comentários das pessoas ao seu redor eram logo abafados pela adrenalina que afogava seus sentimentos, dor já não conseguia sentir, apenas medo, frustração, e uma vontade insana de desaparecer. Fechou os olhos, suspirou, e tentou compreender. Mas a realidade lhe escapara, os pormenores da dor eram demais para se encaixarem em qualquer modelo que tentasse construir. Sua imaginação ficara limitada à impotência de assistir àquele triste fim sem nada poder fazer para evitá-lo. Via-a pálida, cianótica, rígida, ausente daquele calor e da alegria que costumava irradiar.

Por tantas vezes já pensara sobre a morte, por tantas vezes via-a banalizada, assistia-a como uma estatística e divirtia-se com ela como um entretenimento. Neste momento pensava em como usamos a morte, em como, embora sendo a nossa única impossibilidade, o nosso único inalcançável, passamos a vida a ensair o momento em que já não viveremos. Mas sentir a morte, viver a morte, presenciá-la ser roubado por ela é algo que nunca pensara antes, e que sempre evitara pensar. Mas a única compreensão que obteve sobre a morte foi que esta é impossível, a vida é um pormenor transitório em meio à eternidade e infinitude que cercam o nada...

O nunca e o para sempre são dois conceitos inatingíveis para qualquer ser humano. Limitados à temporariedade da vida, nunca poderemos contemplar e compreender a infinitude, mas tememo-la. E de facto nascemos para o efémero e o intenso, nascemos sem intuito ou finalidade, e viver não é mais um direito do que uma obrigação. Não nos resta nenhuma outra hipótese senão aceitar e deixarmo-nos levar por este magnífico teatro que é a vida...

Neste momento acordou, a transpirar, assustado, numa respiração ofegante, receando a própria imaginação, livrando-se das falsas memórias de um sonho indesejado. Virou-se para o lado e sentiu o calor de um toque, uma mão percorreu-lhe o rosto e aquela voz que tantas vezes ouvira e muitas outras vezes mais ainda ouviria sussurrou um tenro "boa noite". Neste momento se sentiu agradecido por poder viver tal felicidade todos os dias, e voltou a dormir radiante, com um sorriso que o mais brilho dos escuros iluminaria.

Wednesday, March 01, 2006

Sessão de atormento de almas alheias desejosas de encontrar a verdade universal sobre a natureza da vida, do universo, e de todo o resto, parte I.



A resposta para a vida, para o universo e para todo o resto é 42. Isto é um facto óbvio e todas as pessoas estão cientes disso (ou ao menos os devotos de Douglas Adam).
Aparte este facto, também poderia dizer que a resposta para tudo está no livro de São Cipriano, assim como diria que está na Bíblia, no Corão, nos ensinamentos de Buda, nos Morangos com Açúcar e no rolo de papel higiênico perfumado de face dupla ali na casa de banho. Obviamente que algumas verdades são mais verdades que outras: é muito mais fácil crer no rolo de papel higiênico que tanto diz sobre a nossa natureza do que no livro de São Cipriano, a não ser que este seja feito de papel higiênico e tenha a mesma finalidade que este.

Pensemos antes em três questões:

A prova da veracidade de uma ideia implica a falsidade nas ideias contrárias?
A prova da não-veracidade de uma ideia implica a sua falsidade?
É-nos vantajoso classificar ideias em verdadeiras\não verdadeiras?

Obviamente que no senso comum existe uma linha muito bem delineada entre verdade e mentira. Se eu fiz algo, eu o fiz e pronto! Afirmar o contrário seria contraria a verdade, e logo, seria uma ideia falsa. Mas esta ideia não se aplica a todas as questões, podemos pensar num famoso paradoxo:
Imaginemos um relógio fechado em que não se tem acesso ao seu interior. Consigo observar o relógio, e através das observações ver quais são as consequências palpáveis do mecanismo interno do relógio, mas não consigo fazer nenhuma observação directa ao seu mecanismo em si, pelo que a minha concepção do seu funcionamento ficará limitada única e exclusivamente ao modelo que para ele conceberei.
Posso imaginar um modelo que explique o funcionamento do relógio de uma forma A, e desde que este modelo se ajuste às observações, posso afirmar a sua veracidade. Mas também posso conceber um modelo B que parte de pressupostos completamente opostos e que também se ajustam às observações. Qual dos modelos estará certo?
Caso eu afirme a veracidade de um dos modelos, não poderei simplesmente afirmar a falsidade do outro, visto que ambos têm o mesmo grau de precisão na apreciação da realidade. Mas também não posso assumir a veracidade dos dois modelos visto que ambos são contrários no que toca às suas estruturas. Sendo assim, chego a um impasse, concluindo que não posso afirmar a veracidade de um modelo pela forma como explica, mas posso sim julgar o grau de precisão nas explicações que dá, dando vazão a existência de várias "verdades" divergentes.

Agora imaginemos que o relógio começa a ser submetido a variações bruscas de temperatura. De repente os modelos que concebi começam a falhar e as suas previsões teóricas deixam de concordar com as observações, e neste ponto, posso concluir a não veracidade destes modelos. Introduzo então uma transformação onde passo a incluir elementos nestas ideias que fazem com que ela permaneça condizente com as observações, mas que pode ser exprimida da forma anterior para casos específicos de temperaturas normais. Sendo assim, o modelo será falso por não ser verdadeiro?
Posso não poder concluir a sua veracidade, mas também não posso concluir a sua falsidade, porque como visto, ele nos fornece resultados precisos em determinadas condições. Sendo assim, este modelo pode ser tido como verdadeiro sob determinadas condições, e estando limitado a estas fronteiras que lhe foi imposta.

Desta forma, visto que nunca teremos acesso à verdadeira natureza do objecto em questão, nunca poderemos assumir a completa veracidade dos modelos que criamos para explica-lo, e mesmo os modelos mais precisos a primeira vista terão sempre uma limitação intrínseca. Todos os modelos serão, então, verdadeiros e falsos ao mesmo tempo, pelo que o conceito de verdade em nada ajuda à classificação dos modelos, pelo que posso sempre recorrer ao conceito de limitado\não limitado.
As limitações são a maior dádiva que Deus nos deu. Graças à minha incapacidade em conhecer ao certo a realidade que me rodeia, fujo sempre às verdades, pelo que terei a certeza que todos os modelos construídos por mim serão limitados e por isso, terão de ser revisionados um dia. E é este o princípio que garante a não-estagnação do conhecimento, já que ao assumir que podemos possuir verdades absolutas, estamos na eminência de criar dogmas: modelos que dão não podem ser contestados.
Mas caso deixemos de considerar o conceito de verdade e passemos a servir-nos da limitação dos modelos, podemos sim classificar um dogma: estes sempre está limitado a si próprio, pelo que não posso extendê-lo ou especifica-lo a qualquer observação palpável, visto que uma contra-observação de hipotéticas previsões de um dogma poderiam por em causa a sua veracidade.

Assim, chegamos à conclusão de que todos os modelos são igualmente válidos desde que estejam em conformidade com a realidade observável, e desta forma não faz sentido falar na veracidade de um modelo, visto que todos têm um grau de limitação intrínseca. Sendo assim, posso classificar um modelo consoante a sua extensão e limitação, pelo que me interessa buscar então quais as falhas neste modelo que fazem-no ser limitado. Como não tenho verdadeiro acesso à natureza dos fenómenos que observo, esta busca será interminável e culminará numa assímptota, onde nos aproximaremos cada vez mais e cada vez com maior lentidão a um modelo que explique com coerência todos os factos observáveis.